22/10/2010
Contos

O ESTACIONAMENTO

O dia estava quente e seco, o que é comum em Brasília. Cheguei ao estacionamento no horário de almoço, como era meu costume na época. O terno azul escuro incomodava absorvendo o calor do sol brasiliense. Deixei o paletó no banco de trás, soltei o nó da gravata e desabotoei o colarinho. Antes que eu acabasse meu ritual Wagner veio acenando com um sorriso no rosto queimado e maltratado pelos anos sob o sol e drogas.

– E aí brother? –  Não chegou animado como sempre.

– Fala. – Respondi saindo do carro.

O estacionamento, de um shopping tradicional da cidade mais parece um terreno baldio, maltratado e pronto para receber entulho. Sem pavimentação, no tempo de seca a terra vermelha levanta nuvens de poeira, nas chuvas o barro faz com que os clientes pensem duas vezes antes de visitar o shopping. Na lateral a árvore da galera. Estavam todos e mais alguns embaixo dela. Cheguei, cumprimentei um a um e sentei na mureta, em cima de um papel que Bodinho me deu para não sujar minha calça. No chão duas garrafas de 51 vazias e uma com pouco mais da metade.

Sempre que estou com a galera percebo os olhares curiosos dos que passam, entrando ou saindo do shopping. No meio de moradores de rua, vigias de carros, um homem de terno conversando a vontade, como parte integrante do grupo. Curioso que neste dia a galera estava quieta e mais bêbada do que o costume. Antes que eu perguntasse algo Wagner soltou a notícia que os abatera.

– O Ronaldo morreu. – Olhei para seu rosto tentando entender se era apenas brincadeira. Não precisei me esforçar para saber que não. Ronaldo morava em um barraco no Pedregal junto com seus dois filhos e Edinho, outro guardador de carros do Plano. Os meninos de 5 e 8 anos não suportavam ver a mãe devido as grandes torturas que ela lhes infringiu. O dinheiro para o leite e a cachaça vinha de carros vigiados, lavados e da merla que era comprada em lata e vendida em cabecinhas, quadruplicando o investimento.

– O que aconteceu? –  Perguntei tentando já imaginar a tragédia do dia.

– Cara, tudo por causa de uma pinga. Na sexta Ronaldo foi ao boteco do Manéu, comprou uma garrafa de cachaça, sentou e botou para a galera beber. O Baixinho chegou, pegou um copo e foi pegando a cachaça. Ronaldo levantou e mandou colocar a cachaça de volta na mesa. Pô, o Baixinho ficou bravo com a regulagem da pinga, falou, argumentou, mas Ronaldo não deixou ele tomar. Vai entender a cabeça de bêbado. – Wagner falava como se nunca colocasse pinga na boca. – E baixinho foi embora, e não bebeu da pinga. No sábado Baixinho pagou a cachaça para a galera do bar. Ronaldo chegou quase na hora do almoço, viu a garrafa na mesa pegou um copo e se serviu. Baixinho que estava sentado em um caibro apoiado em tijolos, levantou e acertou a cabeça do Ronaldo com o caibro antes que ele conseguisse colocar o copo na boca. A galera falou que voou pedaços de carne e sangue para todos os lados. Ronaldo caiu, tremeu um pouco e morreu.

– E o Baixinho? – Perguntei ainda sem digerir a história.

– Está foragido.

– E os meninos?

– Fugiram do barraco com medo da mãe vir pegá-los.

Acabou meu horário de almoço e fui para o trabalho com a sensação de ter comido algo estragado. Aquilo que cansei de ver no noticiário da TV, com o sabor “sem sal” de pessoas que não conhecemos e a ridícula entonação de voz dos narradores de tragédias teve novo gosto neste dia. E nos meses que se passaram aprendi que essa comida amarga faz parte do cotidiano de muitas pessoas.

No dia seguinte, ninguém mais se lembrava de Ronaldo, Baixinho, ou de dois meninos desaparecidos.

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