21/07/2020
Contos

FASCINAÇÃO

Fascinação! Foi o que senti quando meus olhos pousaram a primeira vez em Daniela. Ela vestia uma calça cinza de um xadrez miudinho, justa na cintura, quadris e coxas e que se alargava conforme descia para os sapatos de salto alto marrons claros, combinando com o cinto. A camisa social azul celeste era cinturada e estava com as mangas cuidadosamente dobradas, deixando à mostra os braços frágeis e firmes. Carregava uma bolsa preta. A pele alva contrastava com o preto azulado de seus cabelos, presos em uma espécie de rabo de cavalo frouxo, que descia pelo ombro direito. O rosto ovalado de proporções perfeitas conferia personalidade àquele corpo esguio e elegante. Entramos juntos no prédio e enquanto ela se identificava na portaria eu segurava o elevador com o braço estendido nos sensores da porta. Ela agradeceu e acionou o botão de meu andar. Subimos juntos, ela segura de si e eu irremediavelmente perdido.

– Guilherme, você está prestando atenção no que eu estou falando? – ouvi sua voz e despertei daquela lembrança. Fitei seus olhos verdes e mais uma vez senti-me o homem mais afortunado que pisou na terra.

– Sim, Dani, claro! Mas não posso fazer isso. Eu não poderia agir normalmente ao ver seu marido te agarrando. Simplesmente impossível!

Ela riu divertida. – Onde já se viu marido ficar agarrando esposa em um restaurante, Gui? Ainda mais depois de dez anos de casados. Acontece que após a viagem a Vegas ele tem falado muito sobre você. Se sairmos juntos e ele ficar seu amigo tudo será mais fácil.

– Foi uma viagem a trabalho e havia um monte de gente conosco. Por que ele encafifou justamente comigo?

– Ele viu as fotos do evento e estamos juntos em muitas delas. Precisamos ficar atentos nos próximos. Enfim, já foi. Nem parei para pensar nisso.

– Por que você não se separa dele? – perguntei mais uma vez.

– Você sabe – respondeu com um olhar severo –, tem o Gabriel. Deixe que ele cresça mais um pouco, tá? Ele adora o pai e não seria justo fazer tamanha maldade. E nós dois passamos mais tempos juntos do que eu com ele. Não seja tão egoísta!

No dia do elevador tivemos uma reunião na empresa, quando Daniela assumiu a diretoria do escritório de projetos, meu departamento. Ela se apresentou, pediu que cada um de nós fizesse o mesmo e déssemos um resumo de nossas atribuições e dos principais projetos em que estávamos envolvidos. Na ânsia de impressioná-la perdi o fio da meada várias vezes, me comportando como um cachorro que tenta agradar o dono com truques engraçadinhos. “Como sou idiota!”, pensava a cada bobagem que dizia, sem condições de me consertar.

– Hoje você está aéreo demais, Gui! – Novamente ela me chama do devaneio. – Você vai sim! E, por favor, leve junto uma namorada.

– Namorada! Que namorada? Você tá louca?

– Arrume alguém! Pensa, seu bobo: eu, Otávio e você, sem acompanhante, sozinho na mesa. Não acha que vai ficar estranho?

– Mas eu achei que iriam mais pessoas. Só a gente não dá! Não faz isso comigo, Danizinha. Não dá!

– É preciso. Ele está desconfiando. Perguntou muito sobre a viagem, o que fizemos por lá, quis saber um montão de coisas sobre você. Não fique bravo, tá? – disse ela, comprando-me com seu sorriso, após breve pausa. – Eu falei para ele que você está noivo de uma linda moça, e por isso que ele fez questão de marcar o jantar.

– Não acredito, Dani! Onde eu vou arrumar uma linda moça até sábado? Pelo amor de Deus! O que você foi fazer? Sua doida!

– Você é esperto, bonito. Vai dar um jeito, eu sei. Aliás, é a única maneira do Otávio ficar tranquilo. No fim do mês temos o Summit no Tivoli Resort, lembra? Se ele continuar preocupado vai acabar indo para a Praia do Forte também e nossos planos vão por água abaixo.

Esperei Daniela entrar no Uber e pedi meu carro ao manobrista do Le Jardin. Aquele nosso jantar era a comemoração de um ano juntos. O ano de virada em minha vida, quando sai da casa de minha mãe no Lago Sul, financiei um apartamento em Águas Claras e um HR-V branco, mudei todo meu guarda-roupas e passei a frequentar novos ambientes. Eu precisava fazer frente ao Otávio. Ele era diretor comercial de uma multinacional, um homem beirando os cinquenta, bonitão, elegante e rico. Quando o conheci, na festa de confraternização da empresa, constatei com alegria que era sisudo e um tanto bruto, principalmente no trato com a esposa. Ponto para o Guilherme! Em meu íntimo sabia que Dani se aventurara comigo porque eu a fazia rir, a tratava como um anjo e por eu ser jovem e espirituoso. Ela estava com trinta e quatro e eu, vinte e nove naquela época. Só que aquilo não era suficiente, eu desejava mais. Eu a queria toda para mim. E sabia que para tirá-la de Otávio eu precisaria ser um homem para toda a vida e não um garoto para uma aventura.

– Sua noiva é uma linda mulher! – foi a primeira coisa que Otávio disse, após nos cumprimentarmos à mesa do Rubaiyat. Júlia enrubesceu e Daniela olhou-a de um modo estranho.

– Obrigado – respondi, enquanto todos sentávamos.

Daniela estava linda em um vestido longo e Júlia não ficava para trás. Dani tinha a vantagem do viço da juventude. Minha prima acabara de completar vinte e três anos e estava adorando fingir ser minha noiva e receber os olhares furtivos de Otávio, durante o tempo que permanecemos à mesa.

– Meu Deus do céu, Gui, que homem esse Otávio! Não acredito que aquela mulher deu mole para você – disparou ela assim que entramos no carro.

– Deu mole, não! Estamos juntos há mais de um ano e vou faze-la largar dele.

– Ela é linda, também. E muito elegante. A tia Vânia sabe que a você está saindo com uma mulher casada, seu cafajeste?

– Isso não é da conta dela. Aliás, nem da sua – respondi rindo.

Na manhã seguinte Daniela me chamou à sua sala logo cedo.

– Quem era aquela mulher de ontem? – perguntou assim que fechei a porta.

– Minha noiva, ué! Não te apresentei logo que chegamos?

– Guilherme, estou falando sério! Quem era? De onde você tirou essa tal Júlia?

Percebi os ciúmes fervendo. – É uma ex-namorada – respondi, simulando um ar sacana.

– E você leva uma ex-namorada em um jantar comigo? Tem cabimento uma coisa dessas?

– Mas você que inventou isso, amor. Não era…

– Amor, não! – me interrompeu. – Não era para levar nenhuma ex. Onde vocês foram depois? O que fizeram?

– Deixei-a em casa. Só isso. E depois fui para a minha.

– Sai daqui! Vá já para a sua sala – ordenou ela como a um cão. Eu sabia que tinha que dizer a verdade, mas não precisava ser naquele momento. Levantei-me devagar e saí em direção à porta. Antes de abri-la, virei-me em sua direção e soltei: – Lembre-se que a ideia foi sua.

– Sai daqui! – repetiu ela apontando à porta.

Logo que cheguei em minha mesa tinha um e-mail dela, marcando de sairmos para um café no fim da Asa Sul. Nos encontramos lá, nas mesas atrás da quadra.

– Amor, não gostei de ver você com a Júlia e aquilo me fez pensar. Quero muito ficar só com você e mais ninguém. Chegou a hora.

– Você quer dizer, a hora de largar o Otávio? – perguntei, pasmo.

– É, largar de vez. Te ver com outra mulher me fez pensar em como gostaria de passar o resto de meus dias. E percebi que não quero perder tempo. Temos que viver essa vida, nos divertir, passar nosso tempo juntos. E o Gabriel vai ter duas casas para curtir. Hoje em dia é a coisa mais comum para os filhos. Quando mais cedo, mais fácil dele se acostumar. E você também.

A declaração pegou-me de surpresa e repensei sobre contar a verdade para Daniela. A Júlia tinha que continuar sendo minha ex, pelo menos por enquanto.

– E quando você vai falar com ele?

– Logo depois de nossa viagem para o Tívoli. Assim que chegar em casa será a primeira conversa que teremos.

Só que a viagem não aconteceu. Em março daquele ano houve a pandemia de um tal coronavírus e todos os eventos foram cancelados. E pior: a empresa colocou os funcionários para trabalharem em home-office e eu só via Daniela pela telinha do aplicativo de videoconferência em meu monitor. Os dias eram solitários em meu apartamento e mergulhei fundo no trabalho como forma de passar o tempo e vencer o tédio que se assomava constantemente. Tentei convencer Dani a terminar com o Otávio mesmo assim, no meio da quarentena, e vir morar comigo, mas ela estava irredutível e percebi que realmente era pedir demais. Ainda por cima com o Gabriel, que tinha apenas cinco anos. O problema foi que com o passar das semanas ela foi mudando. Perdeu o interesse nas sacanagens que fazíamos por vídeo-chamadas, se mostrava mais ocupada e distante a cada dia e ao mesmo tempo reparei que nos últimos dias estava arrumada e feliz. “O Otávio a reconquistou”, pensei alarmado. Estão trancados juntos por muito tempo, o cara é experiente, bonito, deve saber como fazer uma mulher feliz. Na nossa próxima vídeo-chamada decidi jogar aberto com Dani.

– Você desistiu de nossos planos, não é mesmo? Não quer mais deixar o Otávio.

– Fizemos dez anos de casados, Gui. Na semana passada. Dez anos! Não é fácil deixar uma relação de tanto tempo. E temos um filho, entende?

– Eu sabia! Tinha certeza! Essa porcaria de quarentena! Puta que pariu! Enquanto eu sou obrigado a ficar sozinho na porra deste apartamento você está aí, trancada com o Otávio, transando todos os dias.

– Olha só, ele não tem todo esse ânimo não, meu amor – respondeu-me com seu sorriso. – Sinto sua falta. Sinto falta da gente. Só que precisamos esperar passar esse período. Não tem o que fazer… só esperar. Tenha paciência, vai dar tudo certo.

A conversa com Dani me fez cair em profundo desânimo. Imaginava seu corpo alvo e esguio nos braços do marido. Era só fechar os olhos para ver ambos nas mesmas posições e brincadeiras que fazíamos juntos, e aquilo me perturbava. Passei três dias sem conseguir trabalhar direito e na sexta tomei um porre logo depois do almoço. No fim do dia recebi um e-mail de Daniela, cobrando um documento do trabalho, que eu não enviara no dia anterior. Bêbado, peguei meu celular e digitei rapidamente pelo whatspp: “Tudo bem, então. Vc fica com o Otávio. Vou sair com a Júlia, enquanto tudo isso não passa. Maldita quarentena”. Não tinha como saber se ela havia lido a mensagem, pois a confirmação estava desabilitada e esperei com o celular na mão até cair no sono. Acordei no meio da madrugada e lá estavam as respostas: “Vou falar com o Otávio hj. Não saia com ela. Te amo”, seguido três emoticons de corações. As demais mensagens não eram tão afetuosas: “Se sair com ela, te mato” e outras tantas, perguntando onde eu estava e o que estava fazendo, seguidas de ameaças pela falta de respostas. Olhei as horas: passavam das três da madrugada e mesmo assim liguei de imediato. Caiu direto na caixa postal. Não preguei os olhos por toda a noite e a partir das sete da manhã liguei várias vezes para a Dani, sempre dando caixa. “Está desligado o celular”, concluí em desespero. Minha mente estava sitiada e não pude comer, ver televisão, ligar o notebook, nem fazer nada além de zanzar por todo o apartamento olhando a tela do celular a cada dois minuto. Me sentia suspenso no ar, até que no meio da tarde recebi a ligação tão desejada.

– Oi, amor. Desculpe não ter te ligado mais cedo. Vi as chamadas perdidas. Sabe como é, né? Eu e o Otávio tínhamos muito o que conversar.

– Você falou com ele?

– Falei. Está tudo certo.

– Tudo certo? – exultei, voltando à vida. – E como foi? – perguntei ansioso – O que ele disse? Está tudo bem?

– Tudo bem, calma! Vem prá cá. Tomamos um bom vinho, um banho de piscina e te conto como foi. Sinto sua falta.

– Mas e o Otávio?

– Ele não está em casa. Vem logo! Estou esperando.

Tomei um banho à jato e saí como um raio rumo a casa de Dani no Lago Sul. No caminho não podia acreditar em toda a sorte do mundo que sorria para mim. “Será que ele vai deixar a casa para ela no divórcio?”, pensava, sonhando nos dias vindouros, morando com Dani na linda casa para em seguida retificar meus pensamentos: “Tanto faz! Podemos morar em meu apartamento, mesmo. Não foi para isso que o comprei?” Nos devaneios pensava no filho: “Mas e o Gabriel, será que vai morar conosco?”. E a mente vagava entre todas as possibilidades que se abriam diante de mim. Sem perceber o trajeto, imbiquei o carro em frente a garagem, o portão se abriu e vi Dani caminhando, envolta em um hobby branco felpudo. Ela estava na piscina. Nos abraçamos sofregamente. O primeiro abraço após três meses de distanciamento. Senti sua cintura em meus braços por baixo do tecido atoalhado, seu beijo quente, seu desejo me conduzindo pela casa, entre beijos e apertos, até uma grande suíte no andar superior onde nos jogamos na espaçosa cama. Possuí Daniela com paixão e desejo contidos há meses, o que me levou a um êxtase prematuro, impetuoso e inenarrável.

– Será que da próxima vez você consegue trazer sua prima? A Júlia? – ouvi a voz familiar e saltei da cama para me deparar com Otávio, sentado em um sofá no canto do quarto. Fiquei em pé, do lado aposto, pasmado e confuso com as mãos tapando meu sexo.

– O que você acha, coelhinha? – perguntou ele, dirigindo-se a Daniela.

– Não foi isso que combinamos! – protestou ela. – Você ter me traído com ela é uma coisa. Mas nunca vai trazê-la para nossa cama!

– Ela é sempre assim, dominadora. Pelo menos comigo – disse ele, olhando-me diretamente com seus olhos acinzentados. – É assim com você também? – perguntou-me ao final.

– Pode continuar saindo com ela, se assim quiser! – ralhou Dani, ignorando totalmente o que o marido me falara. – Só que nunca, nunca sairemos juntos!

– A Júlia é persona non-grata, não é? Mas eu tenho que ver você transando com esse garoto. Acha isso certo? Precisamos renegociar os termos. Pensando bem, agora que a poeira baixou, acho que fiquei na desvantagem – disse Otávio, enquanto abismado eu o assisti deixando o hobby pelo caminho e se deitando totalmente pronto ao lado de Daniela. Seus lábios se tocaram e ela lançou-me um olhar oblíquo, chamando-me com um delicado aceno de sua mão livre e um murmurado: “vem logo!”, sufocado e carregado de languidez. Olhei-a estupefato e mesmo sem querer lá estava a bunda de Otávio, que virou a cabeça em minha direção e disparou: – Ou vem ou vai! – e logo voltou à carga com a esposa.

Deixei-os no quarto sob os protestos chorosos e asfixiados de Daniela, carregando minhas roupas para vestir-me no primeiro banheiro que encontrei pelo caminho. Desci correndo a larga escadaria e entrei em meu carro, buzinando longamente. O portão se abriu e dirigi rumo a Águas Claras, por sorte cruzando uma cidade vazia, onde todos estavam dentro de suas casas, isolados, com medo do tal vírus e sem tempo para problemas como o meu.

Passei o restante de sábado e todo o domingo variando entre a apatia total e um afã descontrolado. Por inúmeras vezes pensei em ligar para Daniela, lutando contra a imagem – agora real – dela e Otávio nus na cama. Não dava. Eu tinha que crescer e decidi focar no trabalho. Acordei cedo na segunda, terminando o relatório atrasado e fazendo contato com as equipes dos projetos que gerenciava. Às três da tarde recebi um e-mail de Daniela, que abri com avidez.

“Prezado Guilherme Cordeiro,

Devido à crise motivada pela pandemia haverá redução de pessoal, portanto, lamento informar-lhe que a partir de hoje seus serviços não são mais necessários à empresa. Peço a gentileza que entre em contato com a Carolina do RH, que irá lhe passar os detalhes sobre sua rescisão contratual, sanar eventuais dúvidas e lhe dará acesso à sede da empresa, para que retire seus pertences pessoais.

Cordialmente, Daniela Lobo.”.

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