22/03/2020
Contos

NAÇÃO CORONAVÍRUS

Aproveitando que as mãos voltaram a me obedecer, após inexplicável episódio de rebeldia, escrevo esse breve relato de minha manhã de quarentena dominical. Um domingo incomum, começando pelo fato de, ao olhar pela varanda, perceber o Eixão aberto. De toda forma, eu precisava sair para percorrer meus cinco quilômetros diário. Tomando todas as precauções, claro!

Saí de máscara facial descartável e fone, ouvindo os melhores rocks clássicos já gravados e fui interrompido pelo toque do whatsapp. Existem apenas dois toques que atendo enquanto caminho: o da família e o do trabalho. Era da família e trazia a seguinte mensagem:

– Passe no mercadinho na volta e compre isso, isso e aquilo – seguido de três emoticons de beijo e um de coração.

Na volta, subi por trás da quadra torcendo para o mercado estar fechado. Era quarentena, oras bolas! Não estava. Na entrada havia um jovem, luvas, máscara e um termômetro, daqueles que mede à distância, e o apontou para minha testa.

– O senhor não poderá entrar – disse-me ele, constrangido.

– Como assim? Devo estar um pouco quente por ter acabado de dar uma corridinha, não?

– De toda forma, o senhor não pode… – o rapaz foi interrompido por um acesso de tosse, que vinha bem detrás de mim. Dei um pulo para o lado e olhei assustado para trás. Era um casal de idosos e o homem tossia como um condenado, com um lenço de pano em frente a boca e o nariz.

– Desculpem, ele sempre tosse assim. Não se preocupem – disse a vovozinha, com olhinhos azuis suplicantes e máscara de tecido de florezinhas.

Todos se afastaram como se fosse um aidético jogando sangue pelos ares. Eu já estava a uns oito metros do casal. O menino mediu a temperatura de ambos e os deixou-os entrar. Voltei lá. Inconsolável.

– Não acredito! Você não me deixou entrar, mas liberou aquele senhor que está tossindo igual um moribundo.

– Me mandaram não deixar entrar ninguém com temperatura acima de trinta e sete e meio. Não falaram nada sobre tosse – respondeu-me ele.

– Mede de novo minha temperatura, por favor.

– Ah, agora sim! Baixou. O senhor pode entrar – disse-me ele.

Entrei e só conseguia imaginar em quais produtos o senhor havia tocado com aquelas mãos coronárias. Comecei a pegar as coisas com um saco plástico na mão e dei-me conta que iria levar aquilo tudo para casa. De nada ia adiantar o saco, eu teria que exercitar a fé e a esperança. Fiz minhas compras e fui para a fila do caixa. Duas pessoas à frente e lá estava o casal. O senhor tossindo e a vózinha se desculpando. Estavam com uma compra grande e permaneciam na porta do mercado discutindo quando eu terminei de colocar meus poucos itens em sacolas plásticas.

– Ei, moço – chamou-me a senhora de olhinhos suplicantes – pode nos ajudar a levar essas sacolas até o carro ali em cima?

– Claro! – respondi após hesitar por um instante.

Olhei para as sacolas e vi coronas redondinhos em toda parte. Seja o que Deus quiser, pensei e segurei firmemente as alças de um monte delas, ajeitando-as junto com as minhas. O velho seguia emburrado e tossindo esporadicamente, levando as demais.

– O senhor já foi a médico? – perguntei-lhe no caminho.

– Claro! Não tenho o coronavírus, se é isso que quer saber – respondeu-me ele.

Seguimos em silêncio. Coloquei as sacolas no porta malas da SUV e antes da sair o senhor me estendeu a mão, dizendo: – Obrigado.

Olhei a mão estendida e lembrei-me dos abundantes ensinamentos sobre respeitar os idosos, que eu recebera na infância. Inferno! Apertei a mão do sujeito e vi a colônia de coronas passando para a minha. Segui para casa em ritmo acelerado e, inconscientemente, passei as sacolas para a mão esquerda para coçar o nariz com a direita.

– Ei, o que você está fazendo? – eu disse alto. – Essa mão é a mão coronária. Não a coloque no nariz, seu louco!

Mas o nariz coçava demais e eu precisava fazer algo. Já iria coçá-lo com a esquerda quando me lembrei que já havia passado a sacola contaminada para ela. Apertei o passo, coçando o nariz com o ombro e as mãos rebeldes loucas para fazer o trabalho. Cheguei esbaforido na portaria do prédio.

– Ei, Joaquim, pode me dar a chave do banheiro aqui do térreo?

O porteiro levantou-se em câmera lenta, pegou a chave e antes de me entrega-la perguntou-me: – Você vai demorar muito?

Eu podia ver os coronas em festa nas minhas mãos. O nariz coçava insistentemente. Respondi: – Não, só vou lavar as mãos antes de subir.

– Serve álcool gel? – perguntou-me ele, apontando para a bisnaga em cima da mesa.

– Serve!

Ele colocou um pouco em minha mão e pude ver os coronas rechonchudos derreterem, como se uma bomba atômica explodisse em sua nação. Depois de esfregar muito ainda via alguns deles, feridos, moribundos, mas vivos e pedi mais álcool gel. Ele não gostou muito, contudo colocou mais um pouco. Pânico na coronalândia. Agora todos estavam exterminados. Peguei as sacolas e imediatamente larguei-as, sentido os coronas subindo das alças plásticas para minhas mãos e rapidamente se multiplicando. O porteiro me olhava curioso. Queria pedir mais álcool, mas não tive coragem.

Peguei as sacolas e subi correndo pelas escadas, amaldiçoando os vírus. As mãos com um desejo insaciável de coçar o nariz. Na área de serviço passei pano com álcool em todas as embalagens, joguei fora as sacolas, lavei as mãos até os cotovelos e passei pano com álcool por cima. Podia ver o pandemônio na nação dos coronas. Todos se derretendo como gelatina. Sentei-me no sofá, exausto. O nariz coçando.

– E aí, qual de vocês duas irá coçar o nariz agora?

Nenhuma mão se manifestou. Um dia corto vocês, malditas! Usei o ombro.

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