16/02/2018
Contos

O CONTO

– Você deveria matá-lo. Simples assim. Matá-lo.

– Vá se foder!

– Eu tô falando sério! Você deveria matá-lo – repeti. – Eu o mataria.

– Vá se foder!

Como eu amava esse cara. Seu rosto quase não demonstrava emoções, tudo o que pensava, fazia, almejava e sentia era expresso com alterações mínimas em sua feição. Quem não conhecesse direito o Edu nunca saberia o que se passava em sua cabeça. Eu invejava esse seu jeito. Seria capaz de dar meu dedo mindinho para ser assim também. O mais intrigante é que não era algo forçado, ele nescera assim, suponho. Pelo menos desde que me recordo, ainda no tempo em que jogávamos bola na rua, era sempre assim. A molecada se matava, gritava, urrava de raiva e alegria. Ele não. No máximo um sorriso tímido ou uma expressão nem séria, nem brava, nem alegre, nem triste; acho que meio pacífica, como alguém que simplesmete existe e está satisfeito com sua existência.

Analisar pessoas sempre fora meu hobby predileto, lê-las, julgar seus sentimentos, adivinhar suas ações, supor o que desejavam. Eu sempre fora bom nisso. Mas com Eduardo era difícil, mesmo depois de décadas de amizade. Acho que às vezes, ele sabendo que eu amava esse passatempo, me deixava ler uma ou outra expressão. Contudo, quando estava resoluto, seu rosto era como o busto de bronze dessas estátuas que vemos nas praças.

– É sério porra! Presta atenção em mim caralho! Você precisa fazer algo a respeito – repliquei aumentando o tom de voz.

– Vá…

– E não diga vá se foder de novo, senão quebro essa garrafa no meio da sua cara! – falei em alto tom apontando para a garrafa de cerveja que estava sobre a mesa.

– Ok então. Não digo.

Concluí que era impossível manter acessa a fogueira da raiva diante daquele rosto pacífico. As chamas simplesmente dimuniuam até restarem apenas brasas. É fácil manter a irritação em alta com alguém que nos replica ou nos ignora totalmente. Mas com quem te manda se foder de forma tão natual é amável, não é mole. Não para mim.

– Meu, você é um veado. Um tremendo veadinho. E o Márcio foi um puta filho da puta, tá entendendo? Fi-lho da pu-ta – repeti separando as sílabas -, corno, viado. E você com essa cara de bicha não faz nada. Se liga, se você não fizer nada, eu vou fazer.

– Vai nada. Você fala demais. Sempre falou. – respondeu tranquilamente.

– Vou, caralho! Você sabe que vou – repliquei resoluto olhando diretamente em seus olhos. Quando a irritação passava, como naquele momento, eu me sentia triste. Triste com a situação e com a certeza de que nada seria como antes. Esse sentimento era o que eu queria exterminar. A ira, a irritação, a raiva eram fáceis de lidar, mas a tristeza era muito incômoda. Virei o que restava do uísque em meu copo e fiquei olhando para a comercial da Asa Norte sem conseguir fixar o olhar em nada.

– Eu que vou… – falou Edu alto me fazendo voltar a atenção à ele e, após uma pausa, emendou sorrindo – mijar. – levantou-se rápido e saiu rumo as escadas que desciam ao banheiro me mostrando o dedo médio esticado.

Voltei minha atenção à rua, uma viatura da polícia militar estava parada no balão esperando os descuidados estacionarem em local proibido para serem multados. Fiquei olhando a luz de sinalizaçao que variava em azuis e vermelhos enquanto tentava achar uma explicação para a merda que o Márcio fizera. Nós três, eu Edu e Márcio éramos amigos há mais de 25 anos e tínhamos acabado de fazer 30, ou seja, quase por toda nossas vidas. Crescemos juntos, estudamos juntos, moramos juntos por mais de 3 anos antes de mudamos, também juntos, para Brasília, após Edu passar em um concurso público. Dividimos o apartamento em Brasília até Edu se casar com a Eliana, uma mulher que ele conhecera no trabalho.

Verdade seja dita, quando o namoro de Edu engatou e ele começou a dormir fora quase todos os finais de semana, foi assustador para mim. Ele abandnou as noites de bebedeira, as loucuras com o veleiro e as mulheres e até nos treinos de boxe virou figura rara. Mas aos poucos ele foi trazendo a Eliana e ela foi se aproximando, pegou gosto na vela, nas tarde no lago, nas discussões filosóficas e claro, nas intermináves garrafas de cerveja. Não se incomodava com as outras mulheres que iam e vinham. Ela era uma loira alta e bonita, cabelos médios ondulados, sorriso largo e sincero, extrovertida e topava quase todos os nossos programas de índio. Era o toque de classe que faltava em nosso pequeno grupo. Ela era tudo de bom.

E então, quando a vida adulta parece começar a fazer sentido; eu com livro publicado e vivendo da literatura, Edu, consursado e casado, Márcio trabalhando em uma multinacional, ganhando bem e pegando todas as mulheres que queria, o que acontece? O imbecil do Márcio trepa com a Eliana. Trepa com ela na casa do Edu, na  cama dele! Não sei se uma, duas ou dez vezes, sei que o Edu pegou os dois em flagrante. Eu sempre me achei um cara condescendente. Imaginava que um homem podia falhar diversas vezes e por diversas razões. Podia foder com a própria vida e com a vida das pessoas que amava de inúmeras forma diferentes. Podia, inclusive, perder tudo por seguir sonhos idiotas que só dizem respeito a ele mesmo. Isso tudo eu conseguia entender e até mesmo perdoar. Afinal, algumas das pessoas que eu mais admiro e respeito no mundo fizeram isso. Contudo, trair um amigo de forma covarde e vil era para mim totalmente imperdoável. Eu não conseguia aceitar a situação e muito menos a postura pacífica de Eduardo.

– Capitão, traz mais uma, do mesmo jeito – gritei para o garçom apontando para meu copo vazio.

– Falou – respondeu e acenou um jóia a uns 3 metros de distância. Botecos são ótimos. Em São Paulo eu era cliente de todos os pés sujos perto de casa. Alíás, depois que larguei de vez a faculdade passava mais tempo nos botecos que em qualquer outro lugar. Somente neles me sentia à vontade. Podia encher a cara e esquecer meus recentes fracassos, observar as pessoas e, se tivesse azar, usar os conhecimentos adquiridos nos anos intermitentes de treino de boxe. Muito dos meus personagens nasceram nesse ambiente, em meio a copos sujos, gritarias e vozes arrastadas se misturando em um barulho ininteligível.

Em Brasília tentei alguns bares pés sujos na Ceilandia e Taguatinga. Não deu muito certo. Minha galera era rock and roll e o público desses botecos era sertanejo, o que denota uma total incompatibilidade. Não deles ao meu respeito, mas de mim com respeito ao ambiente. Também era mais perigoso que os pés sujos de São Paulo. Coisa estranha para se constatar. Até que comecei a frequentar o Beirute, inicialmente na Asa Sul e depois na Asa Norte. Quando saiu uma pequena bolada do meu livro comprei um apartamento atrás do Beira Norte, apelido carinhoso do local. Com o tempo ele se tornou um oásis para mim. O Beira era pura hospitalidade e camaradagem, e o melhor: eu ia a pé.

– Opa Rafael, beleza? – Rodrigo apareceu do nada com um copo de cerveja na mão e sentou-se em minha frente. Rodrigo era um cara gente boa. Tinha os cabelos raspados e a barba um pouco grande, meio desgrenhada. Era coberto de tatuagens, nos braços, pescoço, mãos, peito, barriga, pernas, enfim, em todo o corpo. Seu físico era digno de um boxeador profissional, aliás todo o conjunto me fazia pensar que ele poderia ganhar a vida lutando de mãos limpas na rua, sem camisa, até que um não se levantasse. Eu apostaria nele, tinha todo o jeitão de lutador bom pra cacete. Todavia, era um dos caras mais pacíficos que eu conhecera em Brasília. Casado, trabalhava com alguma coisa de informática, era vegetariano e odiava confrontos. Um verdadeiro talento desperdiçado.

– Fala Rodrigão. Cadê a muié?

– Ficou em casa. Vim direto do trampo.

– Milagre hein? Carta de alforria da Betinha em plena quarta-feira.

– Posso? – Perguntou apontando para a garrafa de cerveja que estava sobre a mesa, pela metade.

– Claro. Não estou bebendo essa porra mesmo.

– Tá nervosa hoje baby?

– Teu cú! Caralho, cadê meu goró? – estiquei o pescoço na tentiva de encontrar o Capitão entre as pessoas que iam e vinham pelo bar. Rodrigo encheu o próprio copo, enquanto eu acenava de longe, lembrando o garçom sobre minha bebida.

– Quem tá bebendo essa cerva? – perguntou enquanto se servia.

– Edu.

– Eduardo? Ele está aqui? – perguntou com ar surpreso.

– Não porra! Tá bebendo a cerva lá na casa dele.

– Vá a merda velho! Alguém me falou que ele tinha ido para Sampa – respondeu momentos antes de Eduardo chegar e sentar-se a seu lado, logo após se cumprimentaram.

– E aí Eduardo, você tá legal? – Rodrigo perguntou com ar de preocupado. Pessoalmente eu não achava que as pessoas se preocupavam, de verdade, com outras que conheciam pouco. Contudo, as notícias corriam e todos queriam um pedaço da tragédia alheia.

– Tudo beleza – respondeu Edu com a mesma cara de busto de praça que não dizia nada.

– Bom! – exclamou Rodrigo olhando com um certo ar de “eureka” para a cara do Eduardo. – Muito bom. – repetiu. – Um brinde a isso!

– Peraí, peraí, peraí! – interrompi apontando para o Capitão que chegava com a garrafa de Jack Daniels. – No mesmo copo – indiquei empurrando o copo em sua direção. Ele colocou sem dó, enchendo mais que a metade. – Agora sim, um brinde. Vida longa aos amigos e morte aos canalhas! – brindamos.

CAPÍTULO 2

Acordei depois do meio-dia. Eu realmente gostaria de manter a rotina de trabalho de alguns escritores que admiro, mas sempre fui um desorganizado inveterado e profundo abominador da rotina. Portando, meio que uso uma rotina por um tempo, até abandoná-la por outra que acabo achando mais eficaz naquele momento. Puro engano próprio para fugir de um trabalho monótono.

Saí de casa e fui ao Beirute com o notebook embaixo do braço. Precisava comer e trabalhar. Sentei em uma mesa na lateral, pedi um Malfuk e dois pães sírios e comecei a escrever. Comi meu desjejum acompanhado de uma cerveja. A cabeça doia um pouco e achei que a cerveja ajudaria. Quer seja pela minha crença, quer pelo efeito medicinal, funcionou. Todavia, não conseguia me concentrar. A imagem do Márcio transando com a Eliana não saia da minha cabeça. Ficava imaginando os dois fodendo na cama e o Edu chegando em casa, ouvindo os barulhos no quarto e indo lá para ver. Abrindo a porta e dando de cara com o Márcio saindo de cima da Eliana dizendo alguma coisa idiota. A Eliana gritando, chorando ou mesmo tentando consolar o Edu. Eu estava preso nas inúmeras opções que essa cena  poderia ter assumido.

Nesse estado de espírito não conseguia evitar de visitar o passado, lembrar que cresceramos juntos, que a única infância em minha memória sempre fora com Márcio e Eduardo. Qualquer coisa anterior à nossa amizade eram apenas pequenos flashes de memória. Pensava nos mais de 25 anos de amizade destruídos e pior, imaginar que não havia amizade porra nenhuma! Que amigo faz isso?

Minha mente ficava vagando de memória e memória, fazendo a concentração no romance que eu estava escrevendo impossível. Fiz a única coisa que podia: parei de escrevê-lo. Fechei o documento, abri um novo e comecei a escrever um conto com um final em mente: um amigo mataria o outro a tiros. O trabalho no conto me absorveu e acabou rendendo bastante. Quando parei de escrever já era noite e estava com todo o esqueleto pronto e boa parte do desenvolvimento da estória também. As ideias fervilhavam em minha cabeça.

Sai do bar e fui para casa. Estava agitado e continuei escrevendo sentado na minha mesa de trabalho. Em dado momento fui ao armário do quarto e peguei o 38 cano curto e a caixa de munição que mantinha lá, na parte de cima do guarda-roupas. Ele já estava municiado, mas retirei todos os projéteis e os troquei, apenas pelo prazer em manuzear a arma. Coloquei-a na mesa em frente ao notebook. Peguei a garrafa de Jack que estava no aparador, enchi o copo e virei de uma vez. Direto para a garganta. Enchi novamente e dei um gole curto que deixei circular por todo o interior da boca até sentir um leve formigamento na língua antes de engolir. Não tirava o olho do Taurus. Bastava atirar no bastardo.

Sentei em frente ao notebook e continuei a escrever freneticamente, preenchendo as lacunas, desenvolvendo o enredo, melhorando os diálogos. O whatsapp não parava de apitar, o telefone tocou algumas vezes, mas eu estava concentrado, aproveitando o momento de inspiração e não atendi. As palavras saiam como água de uma torneira aberta. Acabei com a garrafa de Jack Daniel, que já estava no fim, e abri outra escrevendo madrugada a dentro. Coisa rara de acontecer, varei a noite trabalhando. Já de manhã, depois de vomitar tudo o que queria na folha em branco, desmuniciei o revólver, dei seis tiros secos apontando para a tela do notebook e fui dormir.

CAPÍTULO 3

Acordei com a campainha e fortes batidas na porta. Estava escuro o que me causou uma confusão inicial, mas a insistência à porta me fez levantar rapidamente para fazer cessar o barulho.

– Porra Rafa, não abre a porta não?

– Caralho meu. Já abri, tá cego? – era Edu, vindo direto do trabalho com suas roupas sociais. Sem mostrar um pingo de indignação disse:

– Meu, te liguei um monte de vezes, o porteiro tocou no interfone pra ca-ra-lho e fiquei na porta um tempão. Tá surdo?

– Descupa aí Edu, estava dormindo. Deixa eu ver onde deixei meu celular.

Fui ao escritório e achei o celular descarregado sobre a mesa. Precisava tomar um banho e sair, tomar um pouco de ar. Edu entrou, deu uma olhada em minha mesa, notebook aberto, 2 garrafas de Jack Daniels, uma vazia e outra pela metade, vários projéteis espalhados ao lado do revólver.

– Meu, o que ficou fazendo ontem? – perguntou sem esboçar qualquer preocupação.

– Nada. Fiquei trancado a noite toda escrevendo. Uma bosta de vida, né?

– Sério? A noite toda? – replicou decerto duvidando da minha explicação.

– Foi – respondi.

– Sei, sei – disse lentamente. – E o que é essa arma aí na mesa? – perguntou esboçando um sorriso sarcástico.

– Que sorrisinho é esse hein? Sei lá meu, estava escrevendo um conto, tinha uma arma nele, peguei a minha para dar uma olhada. Mas, a verdade mesmo é que queria mesmo dar um tiro no meio dos olhos do Márcio – falei tentando um tom de provocação.

– Velho, esquece essa porra! Já entrei com o divórcio. Parece que foi você que foi chifrado.

– Caralho Edu, o Marcio fodeu com tudo. Sempre imaginei nós três juntos, curtindo a vida, tipo aqueles filmes que os velhos amigos fazem um monte de merdas… assaltam um banco… fazem uma big festa em Vegas e perdem toda a grana… sei lá. Porra! É uma puta merda o que aconteceu.

– Você sempre foi assim… sensível. Meio homossexual também.

– Sensível o caralho!

– Sensível e sonhador.

– Sonhador o caralho!

– Não, é sério. Você sempre nos manteve juntos. Sempre fazendo coisas, planos, festas, viagens. Comprou o veleiro. Sempre emotivo, amigo pra cacete. Se não fosse você acha que o Márcio se mudaria para Brasília? Mas porra Rafa, aconteceu meu velho. Bola pra frente.

– Não meu! Não tem como. Acredita que ontem não consegui trabalhar no romance? Fiquei lá sentado no Beira sem nenhuma inspiração, olhando para a tela do notebook feito um bosta. Sabe o que fiz?

– Hã?

– Escrevi um conto sobre matar aquele desgraçado – eu ri.

– Sério? – ele riu também.

– É. Está aí no note. Lê e vê se se inspira sua bicha. Vou tomar banho. Não repara não, ainda é um esboço, mas já está cheio de boas ideias – falei rindo.

Antes de entrar no box pluguei o celular no carregar e o liguei. Mais de mil mensagens no whatsapp. Deixei tocando música e tomei banho pensando no conto.

– Edu, precisamos foder com o Márcio. – gritei de dentro do banheiro.

– Cara, você é foda. O conto tá da hora! – ele gritou de volta.

Acabei o banho e voltei para sala para encontrar o Edu ainda lendo no notebook.

– Velho, você é bom.

– Está falando “velho” agora é? – perguntei sacaneando porque o Edu sempre zoava essa giria dos brasilienses.

– Me ambientando. Faz parte velho – repetiu. –  Ei, o conto ficou bom mesmo. Parabéns.

– Eu sei, mas é sério. Precisamos foder com o Márcio. Ele vai estar na 408 hoje. Vamos lá dar uma surra nele.

– Esquece meu.

– Não, vamos lá – insisti pois não era raro ele ceder na mínima repetição minha.

– Esquece.

– Eu vou lá seu veado. Mesmo se você não for. Eu vou – tentei de novo.

– Eu não vou. – respondeu como se estivesse puto, mas eu tinha certeza de que não estava.

– Fica aí então bichinha – era a cartada final.

– Vou para o Beira. Se desistir dessa bobagem passa lá.

CAPÍTULO 4

Fui à cozinha pegar uma cerveja enquanto Edu saia do meu apartamento. Pude escutar ainda um “Lá no Beira daqui a pouco” antes do barulho do elevador parando em meu andar. Procurei nos grupos do whatsapp alguma pista de onde estaria o Márcio. Nada. Imaginei que depois da merda que fizera iria dar uma sumida geral. Matei mais duas longnecks, municiei o revólver e coloquei atrás na calça, imitando os policiais a paisana dos filmes de ação e sai rumo a 408. Chegando lá estacionei na residencial, deixei a arma no portaluvas e fui para a comercial procurar o Márcio pelos bares que a gente costumava beber juntos. Nada. Muita gente conhecida, sentei em uma mesa alguns com amigos e pedi uma dose de uísque.

– E aí Rafa, tudo certo? – perguntou Regina que estava sentada na minha frente.

– Tudo certo. E como não estaria? A vida é uma festa, não?

– Tem um cigarro?

– Tenho.

– Arruma um?

Joguei o maço em sua direção. Foi um bom lançamento, mas ela deixou cair.

– Bruto! – reclamou.

– Mão furada – repliquei sorrindo.

Ela tinha um bonito sorriso. Fazia aquelas covinhas engraçadinhas.

– É que eu queria ver você se abaixar baby. E sorrir…

– Idiota! Mentiroso! – replicou após pegar o maço no chão. Fiquei olhando para ela e pensando nisso. Idiota e mentiroso.

– Mentiroso não. Idiota pode ser, mas não mentiroso.  – respondi e me sentei ao seu lado passando meu braço pelas suas costas. Ficamos ali, conversando a meia voz, eu bebendo uísque, ela cerveja e nos beijando com certa frequência até que senti a coisa esquentar.

– Vamos ao meu apartamento? – perguntei já levantando da mesa.

– Vamos, mas tem que pagar a conta antes né?

Fui ao balcão, paquei a conta e fomos em direção ao meu carro que estava na quadra residencial.

– Então, você está escrevendo outro romance?

– Sim.

– É… o Edu falou. E aí, tá fácil?

– Sei lá, o primeiro saiu assim, meio que sem pensar. Agora, trabalhar com prazo, com agente, nego no pé… É diferente. Não tá sendo tão legal não.

– Sério, que chato.

– Pois é. E minha cabeça também não tá legal.

– Por causa do Mácio e da Eliana?

– É.

– Você se acostuma com eles.

– Como assim? Me acostumo? Que merda é essa? Tá falando bobagem Rê.

– É Rafa. Se eles realmente ficarem juntos, com o tempo você se acostuma. É a vida.

– Como assim, ficarem juntos? Tá louca?

– Caralho Rafa! Deixa de ser babaca. Que mal tem nisso? Ninguém pode controlar os lances do coração, simplesmente acontecem. A-con-te-cem.

– Teu cú! O Márcio foi maior traíra. Não tem como porra! A mulher do Edu…

– Então, mas às vezes eles podem ser felizes juntos. Talvez não era para a Eliana ficar com o Edu mesmo… tava errado. De repente o par dela é o Márcio. Já pensou nisso? Você tembém é amigo dele véi. Não quer ver ele feliz? Você não viu eles lá em cima. Estavam juntos e pareciam tão apaixonados e…

– Onde? – interrompi imediatamente segurando o braço dela. – Onde você os viu?

– Calma. Eles estavam lá na quadra. Achei que você tinha estado com os dois.

– Onde porra?

– Lá naquele bar em cima, do lado do eixinho. Não lembro o nome.

– O Stadt Bier?

– Não, do outro lado da rua.

Meu coração disparou, era a hora. Percorri os últimos metros até o carrro correndo e escutando Regina falar algo, sem distinguir o que. Abri o carro, peguei a arma no portaluvas, bati a porta e me virei a tempo de dar de cara com ela me olhando espantada, apontando para a arma em minha mão.

– Rafa, o que é isso?

Sem responder sai andando apressado segurando o 38 em direção ao bar no início da quadra. Ela vinha atrás, matraqueando chorosa palavras que não me interessavam e eu nem saberia repeti-las. Desliguei dela. Já me imaginava metendo a arma na cabeça do Márcio no meio do bar, todo aquele furdúncio, as pessoas me olhado com ar de pânico, correndo por todos os lados. Senti um prazer imenso ao mentalizar essa cena. Quando passei pela guarita do porteiro do bloco instintivamente escondi a arma colocando atrás na calça e cobrindo-a com a jaqueta. Acho que não sou tão porra louca quanto gostaria. Continuei pensando no que ocorreria ao chegar lá, tentando fazer um plano. Regina, que estava ao celular, não fechava a matraca. Me imaginei virado e metendo uma bala na cabeça dela também. Seria legal ou, pelo menos, o silencio se reestabeleceria. Fui indo rápido e ao chegar no bar entrei por trás, já entre as mesas e na terceira estava o casalzinho.

– Fala Márcio – ele fez menção de levantar-se – Não, não se levante. Vamos comigo até meu carro.

– Opa Rafa. Tudo bem? Não tem como eu não levantar e ir até seu carro. – respondeu sorrindo.

– Cara, vamos comigo até o meu carro. Está aqui atrás. – repeti,

– Você já falou, mas,  meu, agora não dá. Estou com a Eliana.

– Eu tô vendo essa vagabunda. Deixa ele aí e…

– Caralho Rafa, cala a boca. – retrucou se levantando meio ameaçador.

– É isso mesmo porra! Ela, uma cadela e você um filha da puta fura olho! – gritei para todos do bar ouvirem. Márcio fez menção de me dar um murro. Não deu.

– Vai me esmurrar seu veado. Vai então!

– Rafa, fica calmo. – disse Eliana que já estava em pé ao meu lado.

Eu não queria enfrentar a Eliana. Eu estava puto com o Márcio, mas sobre ela não sabia exatamento o que pensar. Continuava sentindo um grande apreço por ela. Não sei que merda é essa que até me arrependi de tê-la chamado de vagabunda. Olhei em seus olhos azuis e disse com calma.

– Não sem mete Eliana. Preciso falar com o Márcio.

– Tá, mas fique calmo – repetiu ela colocando a mão em meu braço.

– Tira a mão de mim – falei em voz baixa enquanto me afastava um pouco da mesa.

– Vamos lá Rafa. Eu vou contigo até o carro, irmão – disse Márcio em tom conciliador. Enconstou a mão no ombro da Eliana e lhe deu um selinho. – Já volto Lê.

CAPÍTULO 5

Só pude pensar em como ele era farsante. Coloquei a mão direita nas costas e senti o aço 38 nos dedos. Queria tirá-lo ali mesmo, dar uns tiros para cima, gritar, fazer uma bagunça no bar. Assustar os dois para valer. Lembrando do conto julguei mais interessante seguir o roteiro que eu havia pensado. Seria uma oportunidade interessante de inversão: basear a realidade em uma obra de ficção. A ideia me agradou demais, apesar que, ao final do conto, Márcio acabaria morto. Sai andando e matutando uma forma natural de levar o Mácio para dentro de minha ficção. Andava calado, a passos acelerados, com ele e a Regina me seguindo de perto. Ele matraqueando um monte de explicações sobre o ocorrido e eu totalmente concentrado em bolar algum tipo de plano, mas sem sucesso, minha mente vagava entre diversos pensamentos loucos.

– Você não vai falar nada caralho? Fala alguma coisa Rafa. Porra meu! Eu estou aqui abrindo meu coração… falando tudo isso…

Eu seguia em silêncio. Ao chegar ao carro abri o porta-malas acionando o controle remoto, subi a tampa, virei-me e lhe disse:

– Porra Márcio! Trouxe uma coisa para você da viagem. Nem sei se quero te dar agora, mas pega aí – menti, apontando para uma pequena caixa de papelão no canto, cheia de marcadores de livros, ao lado de algumas dezenas de exemplares do meu romance que eu mantinha na mala do carro. Dei dois passos para trás.

– O que é? – perguntou meio surpreso.

– Um presente porra! Pega logo. Vou sair fora, ver o Edu no Beira. – retruquei dando-lhe espaço e colocando a mão direita no 38 em minhas costas.

Assim que ele se abaixou para pegar a caixa no porta malas, em um movimento único dei-lhe uma coronhada na cabeça. Diferente do que houve no conto, ele não desmaiou. Bambeou o tronco para frente, colocou a mão na cabeça onde havia levado a pancada e virou-se me fitando com um olhar assustado e confuso. Fiquei paralisado e a Regina deu um berro que certamente acordou todos os vizinhos. “Já estão chamando a polícia”, pensei. Merda de conto!

– Tá louco porra! – Olhou para a mão, ensanguentada. – Você quer me matar?

– Sim – respondi apontando o revolver para o meio de seu peito.

– Abaixa essa arma Rafa. – murmurou calmamente enquanto Regina saia correndo na direção da comercial.

– Merda! Onde vai essa idiota? – falei enquanto a via se afastando. – Abaixa o cacete. Vire de costa, agora – ordenei gritando.

Ele não virou. Voou para cima de mim, agarrou meu tronco e me derrubou no chão. Não fiz o disparo. Cai de costas no alfalto esmurrando a cabeça do Márcio com a mão que segurava o revólver. Acabei machucando a mão e larguei a arma, mas continuei esmurrando sua cabeça, deitado de costas no chão e consegui me livrar dele e me colocar em pé novamente. Ele avançou para tentar me agarrar de novo. Consegui me esquivar e acertei uns dois ou três jabs, mas quando armava um direto ele me derrubou de novo. Luta no chão é uma merda. Ele tentava me imobilizar e eu, enquanto tentava escapar, ia encaixando uns cruzado curtos.

– Parem os dois!

Escutar a voz do Edu foi tão surpreendente que paramos imediatamente a luta. Lá estava ele com a arma na mão e, para minha surpresa, engatilhada.

– Caralho Edu, cuidado com essa porra aí. Tá engatilhada. – eu disse enquanto me levantava do chão.

– A Regina me chamou aqui para ver vocês dois. Dois idiotas…

– Vão todo mundo tomar no meio do cu – interrompeu Márcio gritando. – Estou fora! Fora! Vocês estão totalmente loucos! – simplesmente virou as costas e saiu andando.

– Porra Edu, faz alguma coisa! Não deixa essa veado ir embora. Faz alguma…

– Cala a boca Rafa! – ele me interrompeu meio sério, meio sarcástico, sempre difícil saber o que se passava pela sua cabeça.

– Ei, vira essa arma para lá. Sou seu amigo, lembra? Só faz ele voltar, beleza? – pedi olhando para as costas do Márcio que já passava por baixo do pilotis.

– Meu, cala a boca. Você fala demais. – repetiu enérgico.

– Vá se foder seu filho da puta! Deixou o Mácio ir! Puta que pariu Edu, o que tem de errado com você? Você perdeu, de novo, a oportunidade de fazer alguma coisa que valha a pena. De defender seus direitos, porra! Sempre eu, tenho que brigar por você? – Aquela situação me fez pensar em como eu estava cansado de sempre defender o Eduardo, lutar pelos seus direitos, e ele não fazer nada. – Caralho, meu! Eu sei o que tem de errado com você. Você é um cuzão. Um filha da puta de um cuzão.

– Cala a boca.

– Abaixa essa arma seu cuzão. Bicha do caralho. Corno manso. Você é um puta de um corno… – antes que eu pudesse terminar escutei o barulho do tiro e senti uma porrada no estômago. Era como a dor de um gancho bem encaixado. Cai para trás e coloquei a mão no local da pancada. Senti a camiseta empapada, era sangue, eu sabia. Sentei com dificuldade e olhei para o Eduardo, ele estava me olhando com uma expressão de satisfação. “Caralho ele deve ter gostado muito disso. Olha cara dele.”, pensei.

– Cara, você me acertou.

– Você precisava calar a boca. Não tive outra escolha.

– Meu, está doendo pra caralho – a dor, que começara como uma pancada, avançava irradiando por todo o tórax. Comecei a sentir um gosto de metal na boca e cuspi, só para ter o prazer de cuspir sangue uma vez na vida. Era saliva. “Merda”, pensei. – Não foi assim que imaginei no conto, Edu.

– Sério? Você estava pensando naquilo ao fazer essa merda toda? Escutei o barulho das sirenes se aproximando. Deitei de costas no asfalto e fechei os olhos. Consegui ver a expressão de satisfação do Eduardo na tela de minhas pálpebras fechadas.

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