28/03/2019
Contos

O PRIMEIRO BAILE DE CARNAVAL

Antes de descer a serra na sexta, véspera de carnaval, fui verificar as correspondências. Um solitário cartão-postal do Projeto Tamar me fez voltar aos meus treze anos, quando eu nunca havia visto uma tartaruga marinha, nunca tinha beijado na boca e odiava o carnaval. Da janela do apartamento em Mongaguá eu observava uma pequena multidão ruidosa em frente à peixaria. Fui lá de curioso.

– Oi. O que está acontecendo aqui? – perguntei a uma menina de costas.

– É uma tartaruga marinha – respondeu-me, após virar-se e me fitar com os olhos mais azuis que eu tinha visto.

– Sério? Marinha? – eu desconhecia que no mar havia tartarugas. Não me julguem.

– Coitada. Está em um tanque pequeno, percebe? Olha lá – disse apontando uma fresta entre as pessoas. – Ela não gosta de ficar ali.

Consegui ver a tartaruga enorme em um cercadinho de azulejos brancos. Quando pensei em me aproximar para conhecer a novidade, Olhos Azuis segurou meu braço e me puxou peixaria afora.

– Nós temos que soltar a pobrezinha – cochichou.

– Tá bom.

– Onde é sua casa?

– Em São Paulo.

– Não, seu bobo. Onde é sua casa aqui, na praia?

– Ah! Nesse prédio aí – respondi apontando o edifício bem em frente.

– Eu vou passar o dia em Peruíbe, mas te encontro aqui às dez da noite, tá?

– Sim, tá, lógico. Por que não? – Que doida, pensei.

– Qual o seu nome?

– Rafael.

– O meu é Lúcia. Vou indo, olha lá minha mãe me chamando. Nos vemos às dez, hein? Dez em ponto! – frisou.

– Tá.

– Ah, e tira essa camiseta de caveira com cabelos espetados. É horrível! – disse, apontando minha camiseta branca com a caveira do Exploited, que pintei pessoalmente com silk screen. Minha preferida. Ela era uma patricinha.

Lúcia levou seus olhos azuis para longe. Fiquei observando até que ela e a mãe sumiram em uma esquina. Andei para a praia e sentei-me na areia. Não via a hora de chegar às dez da noite, mas estava certo que a peixaria já teria matado ou vendido a tartaruga até lá. Rondei o local o dia inteiro, sempre cheio de curiosos mexendo no bicho, que permanecia estático em seu pequeno tanque sem água. Quando fecharam a loja deixaram a coitada do lado de fora. Ótimo!

Depois de jantar fiquei na janela espiando a rua, até que, pontualmente às dez, vi Lúcia se aproximando. Desci correndo e a encontrei em frente a peixaria. Ela experimentava o peso do animal.

– Ela é muito pesada. Como faremos? – perguntou abaixada, tentando levantá-la com uma mão.

– Vamos tentar nós dois juntos, com as duas mãos. Um de cada lado – sugeri.

– Tá. Ei, você sabe o que está escrito em sua camiseta?

– É o nome de uma banda.

– Não é não! É palavrão – respondeu-me com um sorriso.

– Que nada! Sex Pistols é uma banda. Deixa de ser boba.

– Não fala esse nome. Que coisa feia! – me repreendeu rindo.

Eu estava com medo de um ataque da tartaruga, mas ela cooperava ficando quietinha. Entramos no cercadinho e conseguimos levantá-la com dificuldade. Nunca conseguiríamos carregá-la pelos quatro quarteirões que nos separavam do mar.

– Olha só, a gente não vai conseguir levar ela, não. Bota de volta – falei.

– Tá bom. Vamos lá em casa.

A casa era perto do apartamento em que eu estava, logo virando a esquina. Entramos e ela me apresentou a mãe e depois o pai, traduzindo para ele em inglês tudo o que falávamos. Finalizadas as apresentações, ambos conversaram e eu não entendi bulhufas, até que chegaram a um acordo e saíram em direção ao quintal. Lúcia acenou para que eu a seguisse. O pai pegou um carrinho de mão e saímos rumo à peixaria. Chegando lá colocamos a bicha em cima e a levamos até a praia, depositando-a cuidadosamente onde a maré chegava em ondinhas, molhando nossos pés. Mal tocou a areia e saiu em disparada, sumindo no mar fosco da noite. Ficamos algum tempo olhando, tentando enxergá-la em meio a água escura. Quando dei por mim estávamos só eu e Lúcia, quietos, pensativos, observando a escuridão. Ela chorava.

Peguei em sua mão e subimos para a areia seca. Sentamos e ela contou que o pai, na verdade, era padrasto. Sua mãe o conhecera em uma viagem para São Francisco e se casaram algum tempo depois. Há quatro anos que moravam lá e estavam em férias no Brasil. Era a primeira vez que o padrasto pisava em terras tupiniquins. Quando se calou, ouvíamos apenas o barulho das ondas. Eu sentia que ela me olhava, mas não tinha coragem de me virar para conferir. Permaneci encarando o mar e sentindo o toque quente de sua mão na minha. Ficamos um bom tempo assim, até que ela quebrou o silêncio.

– Quero que você vá comigo no baile de carnaval amanhã. Tem que ir fantasiado, tá?

– Baile? Não! Não vou nem a pau! Odeio carnaval.

– Sim, você vai ao baile comigo! Eu quero que você vá. Não aceito um não, viu?

Juntei a pouca ousadia que havia em mim e olhei bem em seus olhos. Os cabelos loiros cacheados emolduravam o rosto branco e destacavam o azul de seus olhos. Fiquei algum tempo paralisado e com medo, mas sabia o que deveria fazer. Aproximei devagar meus lábios dos dela. Ela virou o rosto e cutucou a face com o indicador.

– Aqui! – indicou. Dei-lhe um beijinho e enlouqueci com o perfume de seus cabelos.

– Vai ao baile amanhã?

– Vou sim.

No dia seguinte, toquei a campainha da casa de Lúcia no horário combinado. Ela apareceu à porta com uma fantasia de odalisca azul e veio correndo abrir o portão.

– Ei! Que roupa é essa? – perguntou-me antes de dizer qualquer outra coisa.

– Minha roupa para o baile. E eu trouxe isso – mostrei-lhe a máscara de diabo que eu comprara pela manhã, com a frente plástica costurada a um pano preto.

– Éca! Você vai sentir um calor danado com essa roupa e isso na cabeça.

Eu estava de calça jeans, camiseta branca, suspensório e coturno. Já estava sentindo um calor insuportável, debaixo do sol das três da tarde, mas mantive tinha que manter o estilo.

– Que nada! Estou acostumado. Vamos?

Todos no baile estavam fantasiados. Dezenas de havaianos, alguns piratas, odaliscas mil, bailarinas, palhaços, surfistas, super-heróis e eu. Tratei de colocar a máscara e entrar na farra. Com o rosto escondido foi fácil fazer parte da folia, pular, participar dos trenzinhos, jogar confetes e serpentinas e não largar Lúcia nem por um momento. Sentei-me um pouco sem a máscara, os cabelos molhados de suor, e fiquei observando Lúcia deslizar pelo salão. Logo percebi que ela me procurava com o olhar. Quando achou, veio em minha direção, me arrastou pelo braço até uma varanda e nos encostamos no peitoral. Instintivamente sabia que era a hora. O coração acelerou e em um único movimento a abracei pela cintura e colei meus lábios nos dela sem saber o que viria depois. Seus braços passaram pelo meu pescoço e sua língua morna entrou em minha boca. Espontaneamente a minha língua encontrou a dela e o calor mudou de lado, aquecendo totalmente minhas entranhas. Foi meu primeiro baile de carnaval. Foi meu primeiro beijo na boca.

A foto da tartaruga-verde no cartão-postal fora cuidadosamente escolhida. Era idêntica à resgatada naquele carnaval. No verso, um desenho feito a nanquim com traços muito finos. Um casal de adolescentes se beijando em primeiro plano e um baile acontecendo atrás. No rodapé, escrito em letras miúdas cuidadosamente desenhadas: “Estou de volta ao Brasil. Na Praia do Forte. Vamos ao baile comigo? Eu quero que você vá.” Voltei ao presente evocado pela voz de Sofia, que gritou do quarto:

– Amor, se você sair dá uma olhadinha na caixa de correio?

– Eu já olhei. Não tem nada.

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